quinta-feira, 25 de março de 2010

Tico-teco.

Mesmo hoje, aquele sorriso bobo continua estampado naquele rosto lindo. Já não há mais o brilho alegre dos olhos azuis. Agora há um desespero que se mostra de dentro, como quem quer dizer e fazer e não consegue.
Justo ela, que sempre ajudou tudo e a todos. Enfermeira. As crianças cujas mães ou pais estavam internados ficavam em sua casa, assim como aqueles que vinham do interior para visitar parentes internados e não tinham onde ficar. Doava tudo para todos. Mas acima de comida, roupas, sangue, ela doava amor. Doava carinho. Se doava.
A igreja de quarta feira pela manhã já não faz mais sentido, só faz as lágrimas saírem dos olhos de minha mãe. Comer batata doce não tem graça, agora não é ela quem faz. Amendoim doce na páscoa, com ovinhos pintados à mão? Ninguém faz igual.
Quem mais ia me agüentar todos os dias depois da escola, me recebendo, criança chatinha, sempre de braços abertos, com comida prontinha, seguida de pipoca e Cruj? Quem vai convencer meu avô a descer do carro, ir até a cantina e pedir a pizza com quatro calabresas ao invés de duas, só porque sua netinha adora?
A paciência de me ensinar a fazer crochê, só ela tinha. Mais do que avó, realmente uma segunda mãe, desde o dia em que eu nasci. Cuidar da horta, colher morangos, cortar a cana de açúcar e me deixar ficar mordendo. Só ela.
Naquela cama ali parada, com olhar de quem pede socorro, de quem luta. A mente parece intacta, fora pelas alucinações da doença. Mas o corpo apodrece aos poucos , já não responde mais.
O que é vida, presa à uma cama? O que é intimidade, se não se consegue nem tomar banho sozinha? O que é amor, se seu marido já não entende que suas alucinações são culpa da doença?
A maior alegria dela é nos ver. Mas é difícil ir lá e ter que segurar o choro, fingir que está tudo bem, pra não passar tristeza para ela. A filinha da empregada, que ela tanto adorava, sô fazia ela rir, agora foi embora. Ela passa o dia esperando chegar a noite, pra ter a visita da filha. Implora pelos finais de semana, para ter a visita dos netos.
E quando as coisas parecem se acalmar, os pontos começam a abrir. Já não se sabe o que fazer. Com cirurgia o risco de morte é quase total, sem cirurgia já não se sabe quanto tempo demora pra não ter mais volta.
E assim a minha mãe morre por dentro. Eu morro por dentro.

Como se não bastasse, doença no útero e no coração. Não da minha avó. Da minha mãe.

E o medo não vai embora. ...

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